quarta-feira, 27 de maio de 2009

Afetividade

A maturidade afetiva


No nosso mundo altamente técnico e cheio de avanços científicos, pouco se tem progredido no conhecimento das profundezas do coração. “Vivemos hoje o drama de um desnível gritante entre o fabuloso progresso técnico e científico e a imaturidade quase infantil no que diz respeito aos sentimentos humanos”
A afetividade não está por assim dizer encerrada no coração, nos sentimentos, mas permeia toda a personalidade.

Estamos continuamente sentindo aquilo que pensamos e fazemos. Por isso, qualquer distúrbio da vida afetiva acaba por impedir ou pelo menos entravar o amadurecimento da personalidade como um todo.

Observamos isto claramente no fenômeno de "fixação na adolescência" ou na "adolescência retardada". Como já anotamos, o adolescente caracteriza-se por uma afetividade egocêntrica e instável; essa característica, quando não superada na natural evolução da personalidade, pode sofrer uma "fixação", permanecendo no adulto: este é um dos sintomas da imaturidade afetiva.

É significativo verificar como essa imaturidade parece ser uma característica da atual geração. No nosso mundo altamente técnico e cheio de avanços científicos, pouco se tem progredido no conhecimento das profundezas do coração, e daí resulta aquilo que Alexis Carrel, prêmio Nobel de Medicina, apontava no seu célebre trabalho O homem, esse desconhecido: vivemos hoje o drama de um desnível gritante entre o fabuloso progresso técnico e científico e a imaturidade quase infantil no que diz respeito aos sentimentos humanos.

Mesmo em pessoas de alto nível intelectual, ocorre um autêntico analfabetismo afetivo: são indivíduos truncados, incompletos, mal-formados, imaturos; estão preparados para trabalhar de forma eficiente, mas são absolutamente incapazes de amar. Esta desproporção tem conseqüências devastadoras: basta reparar na facilidade com que as pessoas se casam e se "descasam", se "juntam" e se separam. Dão a impressão de reparar apenas na camada epidérmica do amor e de não aprofundar nos valores do coração humano e nas leis do verdadeiro amor.

Quais são, então, os valores do verdadeiro amor? Que significado tem essa palavra?

O amor, na realidade, tem um significado polivalente, tão dificil de definir que já houve quem dissesse que o amor é aquilo que se sente quando se ama, e, se perguntássemos o que se sente quando se ama, só seria possível responder simplesmente: "Amor". Este círculo vicioso deve-se ao que o insigne médico e pensador Gregório Marañon descrevia com precisão: "O amor é algo muito complexo e variado; chama-se amor a muitas coisas que são muito diferentes, mesmo que a sua raiz seja a mesma".


A MATURIDADE NO AMOR

Hoje, considera-se a satisfação sexual autocentrada como a expressão mais importante do amor. Não o entendia assim o pensamento clássico, que considerava o amor da mãe pelos filhos como o paradigma de todos os tipos de amor: o amor que prefere o bem da pessoa amada ao próprio. Este conceito, perpassando os séculos, permitiu que até um pensador como Hegel, que tem pouco de cristão, afirmasse que "a verdadeira essência do amor consiste em esquecer-se no outro".

Bem diferente é o conceito de amor que se cultua na nossa época. Parece que se retrocedeu a uma espécie de adolescência da humanidade, onde o que mais conta é o prazer. Este fenômeno tem inúmeras manifestações. Referir-nos-emos apenas a algumas delas:

- Edifica-se a vida sentimental sobre uma base pouco sólida
: confunde-se amor com namoricos, atração sexual com enamoramento profundo. Todos conhecemos algum "don Juan": um mestre na arte de conquistar e um fracassado à hora da abnegação que todo o amor exige. Incapazes de um amor maduro, essas pessoas nunca chegam a assimilar aquilo que afirmava Montesquieu: "É mais fácil conquistar do que manter a conquista".

- Diviniza-se o amor:
"A pessoa imatura - escreve Enrique Rojas - idealiza a vida afetiva e exalta o amor conjugal como algo extraordinário e maravilhoso. Isto constitui um erro, porque não aprofunda na análise. O amor é uma tarefa esforçada de melhora pessoal durante a qual se burilam os defeitos próprios e os que afetam o outro cônjuge <...>. A pessoa imatura converte o outro num absoluto. Isto costuma pagar-se caro. É natural que ao longo do namoro exista um deslumbramento que impede de reparar na realidade, fenômeno que Ortega y Gasset designou por "doença da atenção", mas também é verdade que o difícil convívio diário coloca cada qual no seu lugar; a verdade aflora sem máscaras, e, à medida que se desenvolve a vida ordinária, vai aparecendo a imagem real".(E. Rojas)

- No imaturo, o amor fica "cristalizado", como diz Stendhal, nessa fase de deslumbramento, e não aprofunda na "versão real" que o convívio conjugal vai desvendando. Quando o amor é profundo, as divergências que se descobrem acabam por superar-se; quando é superficial, por ser imaturo, provocam conflitos e freqüentemente rupturas.

- A pessoa afetivamente imatura desconhece que os sentimentos não são estáticos, mas dinâmicos. São suscetíveis de melhora e devem ser cultivados no viver quotidiano. São como plantas delicadas que precisam ser regadas diariamente. "O amor inteligente exige o cuidado dos detalhes pequenos e uma alta porcentagem de artesanato psicológico ".(E.Rojas)

A pessoa consciente, madura, sabe que o amor se constrói dia após dia, lutando por corrigir defeitos, contornar dificuldades, evitar atritos e manifestar sempre afeição e carinho.

- Os imaturos querem antes receber do que dar
. Quem é imaturo quer que todos sejam como uma peça integrante da máquina da sua felicidade. Ama somente para que os outros o realizem. Amar para ele é uma forma de satisfazer uma necessidade afetiva, sexual, ou uma forma de auto-afirmação. O amor acaba por tornar-se uma espécie de "grude" que prende os outros ao próprio "eu" para completá-lo ou engrandecê-lo.

Mas esse amor, que não deixa de ser uma forma transferida de egoísmo, desemboca na frustração. Procura cada vez mais atrair os outros para si e os outros vão progressivamente afastando-se dele. Acaba abandonado por todos, porque ninguém quer submeter-se ao seu pegajoso egocentrismo; ninguém quer ser apenas um instrumento da felicidade alheia.

Os sentimentos são caminho de ida e volta; deve haver reciprocidade. A pessoa imatura acaba sempre queixando-se da solidão que ela mesma provocou por falta de espírito de renúncia. A nossa sociedade esqueceu quase tudo sobre o que é o amor. Como diz Enrique Rojas: "Não há felicidade se não há amor e não há amor sem renúncia. Um segmento essencial da afetividade está tecido de sacrifício. Algo que não está na moda, que não é popular, mas que acaba por ser fundamental".

Há pouco, um amigo, professor de uma Faculdade de Jornalismo, referiu-me um episódio relacionado com um seu primo - extremamente egoísta - que se tinha casado e separado três vezes. No cartão de Natal, após desejar-lhe boas festas, esse professor perguntava-lhe em que situação afetiva se encontrava. Recebeu uma resposta chocante: "Assino eu e a minha gata. Como ela não sabe assinar, o faz estampando a sua pata no cartão: são as suas marcas digitais. Este animalzinho é o único que quer permanecer ao meu lado. É o único que me ama".

O imaturo pretende introduzir o outro no seu projeto pessoal de vida, em vez de tentar contribuir com o outro num projeto construído em comum. A felicidade do cônjuge, da família e dos filhos: esse é o projeto comum do verdadeiro amor. As pessoas imaturas não compreendem que a dedicação aos filhos constitui um fator importante para a estabilidade afetiva dos pais. Também não assimilaram a idéia de que, para se realizarem a si mesmos, têm de se empenhar na realização do cônjuge. Quem não é solidário termina solitário. Ou juntando-se a uma "gatinha", seja de que espécie for.


EDUCAR A AFETIVIDADE

Mais do que nunca, é preciso prestar atenção hoje à educação da afetividade dos filhos e à reeducação da afetividade dos adultos. Uma educação e uma reeducação que devem ter como base esse conceito mais nobre do amor que acabamos de formular: aquele que vai superando o estágio do amor de apetência - que apetece e dá prazer - para passar ao amor de complacência - que compraz afetivamente - e abrir-se ao amor oblativo de benevolência - que sabe renunciar e entregar-se para conseguir o bem do outro.

O amor maduro exige domínio próprio: ir ascendendo do mundo elementar - imaturo - do mero prazer, até o mundo racional e espiritual em que o homem encontra a sua plena dignidade. Reclama que se canalizem as inclinações naturais sensitivas para pô-las ao serviço da totalidade da pessoa humana, com as suas exigências racionais e espirituais. Requer que se conceda à vontade o seu papel reitor, livre e responsável. Pede que, por cima dos gostos e sentimentos pessoais, se valorizem os compromissos sérios reciprocamente assumidos... Aaron Beek, no seu livro Só o amor não basta, insiste repetidamente em que é necessária a determinação da vontade para dar consistência aos movimentos intermitentes do coração: o mero sentimento não basta.

O "amor como dom de si comporta - diz o Catecismo da Igreja Católica - uma aprendizagem do domínio de si <...>. As alternativas são claras: ou o homem comanda e domina as suas paixões e obtém a paz, ou se deixa subjugar por elas e se torna infeliz. Esse domínio de si mesmo é um trabalho a longo prazo. Nunca deve ser considerado definitivamente adquirido. Supõe um esforço a ser retomado em todas as idades da vida"".

Isto significa cultivar o amor. O maior de todos os amores desmoronar-se-á se não for aperfeiçoado diariamente. Empenho este que, na vida diária, se traduz no esforço por esmerar-se na realização das pequenas coisas, à semelhança do trabalho do ourives, feito com filigranas delicadamente entrelaçadas cada dia, na tarefa de aprimorar o trato mútuo, evitando os pormenores que prejudicam a convivência.

A convivência é uma arte preciosa. Exige uma série de diligências: prestar atenção habitual às necessidades do outro; corrigir os defeitos; superar os pequenos conflitos para que não gerem os grandes; aprender a escutar mais do que a falar; vencer o cansaço provocado pela rotina; retribuir com gratidão os esforços feitos pelo outro... e, especialmente, renovar, no pequeno e no grande, o compromisso de uma mútua fidelidade que exige perseverança nas menores exigências do amor..., uma perseverança que não goza dos favores de uma sociedade hedonista e permissivista, inclinada sempre ao mais gostoso e prazeroso.

O coração não foi feito para amoricos, dizíamos, mas para amores fortes. O sentimentalismo é para o amor o que a caricatura é para o rosto. Alguns parecem ter o coração de chiclete: apegam-se a tudo. Uns olhos bonitos, uma voz meiga, um caminhar charmoso, podem fazer-lhes tremer os fundamentos da fidelidade. Outros parecem inveterados novelistas: sentem sempre a necessidade de estar envolvidos em algum romance, real ou imaginário, sendo eles os eternos protagonistas: dão a impressão de que a televisão mental lhes absorve todos os pensamentos.

Precisamos educar o nosso coração para a fidelidade. Amores maduros são sempre amores fiéis. Não podemos ter um coração de bailarina. A guarda dos sentidos - especialmente da vista - e da imaginação há de proteger-nos da inconstância sentimental, do comportamento volátil de um "beija-flor"...

Tudo isto faz parte do que denominávamos a educação afetiva dos jovens e a reeducação afetiva dos adultos. João Paulo II a chama "a educação para o amor como dom de si: diante de uma cultura que «banaliza» em grande parte a sexualidade humana, porque a interpreta e vive de maneira limitada e empobrecida, ligando-a exclusivamente ao corpo e ao prazer egoístico, a tarefa educativa deve dirigir-se com firmeza para uma cultura sexual verdadeira e plenamente pessoal. A sexualidade, de fato, é uma riqueza da pessoa toda - corpo, sentimento e alma -, e manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor".

A Dor um caminho inevitavel

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As trevas da dor

Por Richard Gräf
Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me (Lc 9, 23).

O problema da dor é o maior e o mais grave dos que se apresentam ao homem. Quem não vencer a dor não vencerá a vida. Compreendê-la e compreender a própria vida.

Todos devemos contar com sofrimentos na vida. Não podemos imaginá-la como um sonho cor-de-rosa, não devemos esperar que ela nos cumule de benesses, porque só assim evitaremos grandes decepções. Se alguém anda constantemente atrás da felicidade, de “dias melhores e mais belos”, a dor apanhá-lo-á inesperada e desprevenidamente, e parecer-lhe-á mais dura e pesada.

Já os pagãos contavam com os sofrimentos e chegavam mesmo a considerar de mau agouro uma felicidade perfeita, que lhes parecia uma afronta aos deuses. Por isso, evitavam um homem demasiado feliz, fugiam dele.

Com o pecado original, começou a dor; com ele terminou a primeira felicidade, o jardim de delícias que Deus nos dera. E começou também um processo de atingirmos o céu baseado em Cristo, no qual a dor e a cruz desempenham um papel proeminente. Logo após o pecado original, o Senhor promulgou a lei do sofrimento para o homem (cfr. Gên 3, 17-19) e para a mulher (cfr. Gên 3, 16), e desde então nunca mais se interrompeu a cadeia de dores. A nossa vida é uma luta, os seus dias são como os dias de um mercenário (Jó 7, 1). A todo o homem são dadas tarefas penosas, e um jugo pesado o oprime desde o dia do nascimento até ao da morte.

O CALVÁRIO, CAMINHO QUOTIDIANO

Um cristão, mais do que qualquer outra pessoa, deve contar sempre e por toda a parte com a cruz e o sofrimento: Meu filho, se tencionas servir o Senhor, [...] prepara-te para a provação (Eclo 2, 1). Aliás, o Divino Mestre esclareceu-nos bem a este respeito: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me (Lc 9, 23). Não é o servo maior do que o seu senhor. Se me perseguiram a mim, também vos hão de perseguir a vós (Jo 15, 20).

Se pertencêssemos ao mundo, este amar-nos-ia, mas, porque não somos do mundo, odeia-nos (cfr. Jo 15, 19): Sereis odiados por todas as nações (cfr. Mt 24, 9). Os Apóstolos não nos deixam dúvida alguma a este respeito. Segundo São Pedro, somos chamados a suportar dores, não como castigo dos nossos pecados, mas pela nossa boa conduta (1 Pe 2, 19-24). São Paulo diz-nos: Todos os que quiserem viver piedosamente sofrerão perseguição (2 Tim 3, 12).

A experiência e a Sagrada Escritura mostram-nos assim a realidade da dor; daí que esta não nos deva encontrar desprevenidos. Esperar a dor é já uma vantagem que lhe lima as arestas mais duras. A fé diz-nos qual é o sentido e finalidade do sofrimento, e assim achamo-nos perante a vida em condições muito diferentes das daqueles que não gozam da luz da fé. Como é difícil a vida para aqueles que nada sabem da Revelação e por isso não conseguem compreender o sofrimento!

Sem a graça divina, não conseguiremos dominar a dor. Cristo salvou-nos, apagou o pecado que clamava contra nós (cfr. Col 2, 13-15; Rom 3, 22-24). Mas cada um de nós tem de levar a cabo os sofrimentos salvadores, com e em Cristo, e colaborar na edificação do Corpo Místico com a dor correspondente à sua posição (cfr. Ef 4, 12-16). Através da nossa união com Cristo, podemos interceder, expiando, por membros imprevidentes ou mesmo mortos.

EMBORA A DOR NOS FAÇA CLARIVIDENTES, NÃO DEIXA DE SER UM PROBLEMA

Na mão de Deus, dificilmente haverá meio mais eficaz do que a dor para nos libertarmos do nosso eu, dos homens e do mundo. Os nossos sofrimentos, permitidos por Deus, visam em especial a felicidade no além e dizem-nos dolorosamente que nesta terra não somos mais do que peregrinos e estrangeiros (1 Pe 2, 11), que não temos aqui cidade permanente (Hebr 13, 14).

Não há dúvida de que muitas vezes seríamos levados a esquecer-nos disso e nos entregaríamos às coisas terrenas e humanas se a dor não nos ajudasse a ver o nada, a caducidade das coisas terrenas, e não despertasse em nós o desejo de um mundo melhor e mais belo. Enfim, a dor suaviza-nos a morte porque, se o mundo fosse uma mansão de felicidade e bem-estar, não quereríamos partir, e a morte seria ainda mais penosa do que é. Quantas pessoas se entregariam ao pecado e cairiam na desgraça eterna se a dor não nos obrigasse sempre a recuar no caminho do pecado!

Mas, muito embora a Revelação ilumine as trevas da dor, esta não deixa de constituir o mais grave problema, o mais negro enigma da nossa vida. O raciocínio reconhece e vê alguns pontos, a fé esclarece outros, mas à aceitação cabe ainda um grande quinhão. Não interessa tanto a Deus que compreendamos o mistério da dor, mas que creiamos no Senhor e lhe obedeçamos incondicionalmente, embora saibamos que não podemos compreendê-lo nem abrangê-lo.

Deus não se deixa abranger por nós, porque é sempre maior, mais extenso que a nossa compreensão (cfr. Jó 26, 14; 36, 26). Ele criou o nosso ser espiritual à sua imagem e semelhança, mas nós deturpamos a sua imagem segundo a nossa imagem e semelhança. Julgamos que deveria agir sempre como nós e, se age de modo diverso e em especial se nos envia padecimentos, duvidamos logo da sua existência.

Para os judeus, a cruz era um escândalo e para os pagãos uma loucura (1 Cor 1, 23). Mesmo os Apóstolos não a entenderam a princípio, e, quando o Senhor falou pela primeira vez dos seus padecimentos, São Pedro quis detê-lo: “Deus tal não permita, Senhor! Não te sucederá isto” (Mt 16, 22). Jesus repreendeu-o imediatamente, e essa sua reação impressionou vivamente os outros Apóstolos. Noutra ocasião em que o Senhor lhes falou dos seus padecimentos, não o entenderam, mas não tiveram a coragem de pronunciar uma palavra: Eles não entendiam esta palavra [...] e tinham medo de interrogá-lo acerca dela (Lc 9, 45). Lembravam-se bem do que sucedera a Pedro. E o mesmo se verificou quando o Salvador lhes falou pela terceira vez dos seus padecimentos (cfr. Lc 18, 34).

Nem mesmo a Santíssima Virgem compreendeu todos os caminhos dolorosos por onde Deus a conduziu e afligia-a o problema do porquê. Quando após três dias de buscas vãs encontraram Jesus no templo, Nossa Senhora perguntou-lhe: “Filho, por que procedeste assim conosco?” E o Salvador respondeu: “Por que me buscáveis? Não sabíeis que devo ocupar-me nas coisas de meu Pai?” Apesar dessa resposta, não o compreenderam: E eles não entenderam o que lhes disse (Lc 2, 48-50).

E nós, compreenderíamos o Senhor se Ele nos respondesse ao problema premente do porquê? Talvez não. Na maior parte dos casos, ainda não entendemos. Os sofrimentos que nos atingem não podem ser explicados no momento em que se produzem, mas apenas em função do conjunto, e é precisamente no seu significado de conjunto que podem ser entendidos. Aquilo que, encarado isoladamente, pode parecer uma loucura, considerado no conjunto pode constituir uma graça divina muito especial.

O PROBLEMA DO “PORQUÊ”

Não é de admirar, pois, que o “porquê” nos acuda aos lábios, principalmente quando se abate sobre nós uma desgraça grande ou quando as dores se sucedem umas às outras. O próprio Salvador, na hora da mais amarga das suas dores, perguntou ao Pai: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46). A dor parecia-lhe como que um muro que ocultava o semblante amigo de Deus (cfr. Mt 27, 46).

A obediência e a submissão tornam-se ainda mais difíceis quando o nosso entendimento nos demonstra sem qualquer sombra de dúvida que sofremos sem culpa. O fardo torna-se insuportável quando vemos que os inocentes sofrem, ao passo que os culpados não só não sofrem, como parecem tirar grandes lucros e vantagens da sua culpa. Há justos que sofrem como se tivessem agido impiamente e há ímpios a quem nada sucede, como se tivessem agido como justos (Ecl 8, 14). Quantas vezes não nos temos apercebido da veracidade destas palavras! Tu és muito justo, ó Senhor, para que dispute contigo; no entanto, desejaria dizer-te coisas justas. Por que é próspero o caminho dos ímpios? Por que vivem felizes os pérfidos? Plantaste-os e eles lançaram raízes, crescem e frutificam (Jer 12, 1-2). Os meus pés por pouco não vacilaram, por pouco os meus passos não se transformaram; porque invejei os iníquos, vendo a paz dos pecadores. Eles não conhecem misérias; têm forte e são o seu corpo. Não participam das canseiras dos outros homens, nem são fustigados como os outros (Sal 72, 2-5).

Não deveria espantar-nos, diante desse panorama, que caiam na confusão aqueles que não têm fé. A nós, porém, a fé diz-nos que o sol do amor divino continua a brilhar no meio da dor. Por detrás dela está o amor de Deus, que é maior que toda a dor. “Deus castiga aqueles que ama” (cfr. Hebr 12, 6). Certa vez, Cristo queixou-se a Santa Teresa de Ávila de que fossem tão poucos os que o amam. A santa respondeu-lhe: “Não deves admirar-te, pois amas os que te crucificam e crucificas os que te amam”.

Quando as crianças não dão ouvidos às admoestações dos pais, estes vêem-se forçados a castigá-las, apesar do amor que lhes dedicam e até por causa desse mesmo amor. Nada há de mais prejudicial para uma criança do que esse amor brando que não sabe recusar coisa alguma, que não sabe castigar. Até uma certa idade, os filhos não compreendem que o castigo seja uma prova de amor e por isso os pais não lhes dão longas explicações, uma vez que só o castigo os pode levar a mudar de conduta e, em conseqüência, a compreender.

Ora, se nem sempre os filhos conseguem compreender os pais, como havemos nós de poder compreender Deus? Com certeza que o Senhor não nos leva a mal choros e queixumes, desde que saibamos reagir com fé. A fé diz-nos que o Senhor é um Deus de amor e ensina-nos a ver esse amor por trás das desgraças, levando-nos a aproveitá-las, a reconhecer o valor que têm para a eternidade.

A DOR E O PECADO

Se olhássemos mais atentamente para a nossa condição de pecadores e para a natureza do pecado, com certeza não nos revoltaríamos tantas vezes contra Deus: Ai daquele que discute com quem o criou, não sendo mais que um vaso entre os vasos da terra. Porventura diz o barro ao oleiro: Que fazes? (Is 45, 9). Pode um mortal ser puro diante do seu Criador? (Jó 4, 17).

Perante Deus, todos somos mais ou menos culpados: todos os castigos são pequenos em comparação com a ofensa que fizemos a Deus ao pecar. Ninguém sofre inocentemente; só Cristo na Cruz e Nossa Senhora a seus pés sofreram sem ter pecado. Quanto a nós, todos sofremos com justiça, todos recebemos o justo castigo das nossas ações (cfr. Lc 23, 41); e se não merecemos a dor que nos aflige num determinado momento, merecemo-la – e talvez mais – por pecados e erros anteriores.

Por isso, não nos devemos admirar de que a dor nos aflija, nem perguntar em que a merecemos. Com muito maior razão deveríamos perguntar em que merecemos o bem-estar e a felicidade quando deles gozamos. Mas é nosso hábito aceitar com naturalidade a felicidade que Deus nos dá, como se a tivéssemos merecido, quando é certo que as coisas deveriam passar-se justamente ao contrário: Se aceitamos a felicidade da mão de Deus, não devemos também aceitar a infelicidade? (Jó 2, 10).

Enfim, nós, pecadores, nunca devemos altercar com Deus por causa da dor, porque não podemos esquecer que Ele não poupou o Filho bem-amado em quem tinha postas as suas complacências (cfr. Lc 3, 22), que o mergulhou num mar de dor como a ninguém na terra. Se tivermos presentes todas estas coisas, será legítimo lamentarmo-nos?

“BEM-AVENTURADO O HOMEM A QUEM DEUS CORRIGE”

Embora compreendamos muitas coisas e possamos seguir o Senhor por alguns caminhos com a razão iluminada pela fé, há muitos outros que não podemos compreender, porque nos conduzem a trevas profundas. Só nos pode ajudar a fé viva na justiça divina e no imenso amor que o Senhor nos dedica. Deus não pode ser cruel, nem por um instante. Quase seria preferível duvidarmos da nossa própria razão a duvidarmos da justiça e amor divinos. Quem perder a fé e a confiança na justiça de Deus, no seu amor, bondade e misericórdia, perderá o chão debaixo dos pés, deixará de ter as suas raízes em Deus, origem da sua vida, e será arrebatado pela tempestade da dor.

A fé diz-nos que Deus é nosso Pai, que está junto de nós quando nos envia o sofrimento. Nesse momento, passamos como que para uma escola superior: O Senhor está perto daqueles que têm o coração atribulado (Sal 33, 19). A dor é mesmo um dos sinais mais seguros de eleição: Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige (Jó 5, 17).

É nosso dever, mesmo ao sofrermos as mais negras dores, estarmos convencidos de que é Deus quem as envia e não começar a ponderar e a cismar. Basta procurarmos compreender o que quer Deus dizer-nos por intermédio desse sofrimento, saber como poderemos valorizá-lo e utilizá-lo. Porque Ele quer salvar-nos e levar-nos ao céu pelo caminho da dor: O que presentemente é para nós uma tribulação momentânea e ligeira, produz em nós um peso eterno de glória incomparável (2 Cor 4, 17). E devemos pensar com São Paulo que os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória vindoura (Rom 8, 18).

Scio cui credidi, “Eu sei em quem creio e confio”, escreve São Paulo (2 Tim 1, 12). O Salvador exorta-nos a não ter medo (cfr. Mt 10, 28; Lc 12, 32). Um passarinho não tem valor e, no entanto, nenhum cai sobre a terra, nem coisa alguma lhe acontece, sem que o Pai o saiba. Nós valemos muito mais aos olhos de Deus e até os próprios cabelos da nossa cabeça estão todos contados (Mt 10, 30). Não há, pois, que ter medo.

Não temais!, diz-nos o Senhor. Ainda que a terra trema e as montanhas se afundem (Sal 45, 3), ainda que nos matem (cfr. Lc 12, 4), tudo vem de Deus e tudo serve para o nosso bem (cfr. Rom 8, 28). Só devemos temer a Deus quando lhe fugimos.

Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rom 8, 31). Nada temas, porque eu estou contigo (Gên 26, 24; Is 41, 10).

Antes 1500 so tinha a Igreja Catolica

Para entender o protestantismo

O Protestantismo partiu, no século XVI, de uma intuição muito válida e oportuna: restaurar a estima e o culto da Palavra de Deus, com todo o seu poder de santificação. Se tivessem tirado as conseqüências lógicas deste princípio, os reformadores teriam corroborado e abrilhantado a única Igreja de Cristo. Pois a Palavra de Deus na Bíblia remete constantemente à Palavra viva da Tradição oral, que na Igreja, assistida por Cristo, passa de geração em geração; é a Palavra oral o critério abalizado para se entender e interpretar a Bíblia. Admitindo a Igreja como depositária e intérprete da Palavra, os protestantes teriam admitido outrossim a autoridade da Igreja para santificar ou recriar o homem mediante a Palavra de Deus, pois esta é não apenas ensinamento para a inteligência mas força viva que restaura o homem. A Palavra de Deus desenvolve toda a sua eficácia quando se torna não apenas audível, mas visível nos sacramentos (água batismal, pão e vinho eucarísticos, óleo sagrado...); assim os sacramentos, como a própria Igreja, estão implícitos na revalorização da Palavra de Deus apregoada pelos reformadores do século XVI.

Infelizmente, porém, estes deixaram/se influenciar por teses da filosofia nominalista e do subjetivismo dos séculos XV/XVI. Arrancaram a Bíblia do seu berço e do seu ambiente co/natural, que é a Palavra de Deus oral; assim a Bíblia foi paradoxalmente desvalorizada, porque feita letra morta, sujeita ao arbítrio tanto de ´´profetas´´ fantasiosos como de estudiosos racionalistas liberais.

Lembrar estas verdades é aplainar o caminho para a reunião dos cristãos; os protestantes afirmam um princípio muito válido, que eles não devem renegar, mas apenas desenvolver segundo a lógica exigida por essa premissa mesma.

0 fenômeno protestante, com as suas diversas afirmações, vai/se impondo à atenção do público, especialmente dos católicos. Variado como é, exige que distingamos entre o Protestantismo clássico, dito ´´histórico´´ ou ´´tradicional´´, que é o de Lutero, Calvino, Knox (século XVI) e o Protestantismo recente, oriundo principalmente dos Estados Unidos da América (pentecostais, mórmons, adventistas, e suas subdivisões ... ). É mais difícil dialogar com o Protestantismo moderno, pois este se torna cada vez mais distante das fontes do Cristianismo: os mórmons têm uma ´´nova Bíblia´´ (o Livro de Mórmon); os adventistas e as testemunhas de Jeová retornam ao Antigo Testamento, com detrimento da mensagem propriamente cristã; os pentecostais enfatizam unilateralmente os fenômenos extraordinários, os estados psicológicos e a ação do demônio, seguindo muitas vezes as emoções mais do que o raciocínio e a fé esclarecida... Ao contrário, o diálogo com o Protestantismo clássico tem sido efetuado entre teólogos num clima sereno, que permite remover atitudes passionais e favorece a compreensão mútua.

Entre os nomes que mais se destacam nesse diálogo, está o do francês Louis Bouyer, que foi fervoroso ministro protestante; guiado pelo estudo objetivo, tornou/se católico e hoje é sacerdote oratoriano, muito interessado em fomentar a aproximação de católicos e protestantes. L. Bouyer escreveu diversas obras sobre o seu itinerário espiritual, das quais merecem destaque ´´Du Protestantisme à VEglise´´ (Paris 1954) e ´´Parole, Eglise et Sacrements dans le Protestantisme et le Catholicisme´´ (traduzido com o título ´´Palavra, Igreja e Sacramentos no Protestantismo e no Catolicismo´´, São Paulo, Ed. Flamboyant 1962). Este último livro é especialmente significativo; daí o propósito de apresentarmos o seu conteúdo nas linhas que se seguem, focalizando precisamente os três pontos em que Protestantismo e Catolicismo mais parecem divergir entre si.

Bouyer frisa sempre que, para compreender o Protestantismo e aplainar o caminho de re/união, os católicos não o devem considerar apenas como um conjunto de heresias, mas, sim, como a afirmação de certos princípios autenticamente cristãos, que necessitavam de ser re/enfatizados no século XVI, mas que infelizmente foram desenvolvidos de maneira heterogênea por influência da filosofia nominalista (o Nominalismo é uma escola que, entre outras coisas, depreciava a razão ou a inteligência humana) dos séculos XV/XVI.

É na base desta observância que Bouyer elabora suas condições, que vamos acompanhar sucintamente.

1. A Palavra

No Protestantismo

A estima da Bíblia é o que de mais típico se encontra na espiritualidade e na teologia protestantes; foi precisamente lendo a epístola aos Romanos que Lutero descobriu a verdade mais fundamental da Revelação cristã: não somos nós os primeiros a amar a Deus, mas é Deus que nos ama primeira e gratuitamente, sem mérito da nossa parte (cf. Rm 5,6/10; 1Cor 4,10/19); não é o homem que toma a iniciativa de procurar a Deus, mas é Deus quem começa por procurar o homem (cf. Rm 9,16).

Em conseqüência, o culto protestante consiste em leituras bíblicas, entre as quais se inserem cantos e orações, e que têm no sermão subseqüente a sua atualização concreta. Após este encontro com a Palavra, o crente procura responder/lhe em seu coração e traduz sua resposta numa conduta de vida adequada.

Mais precisamente: o protestante clássico coloca/se diante da Palavra de Deus como o pecador necessitado de salvação, e ouve a mensagem de que só a graça o salva; isto o leva a uma atitude de confiança no dom de Deus; a Este, e não a si mesmo, o crente atribui a sua purificação interior; a Deus só, e não a si (homem), o protestante tributa a glória.

Além disto, o Protestantismo guardou a consciência / já existente entre os judeus do Antigo Testamento / de que a Palavra de Deus é criadora eficaz; é tão viva que realiza o que ela anuncia (cf. Gn 1,3s; Si 32,9; Is 48,13; Jo 1,3). Abraçando essa Palavra pela fé, o crente se julga renovado interiormente ou ´´uma nova criatura´´ (cf. 2Cor 5,17).

Examinemos agora a posição católica frente à Palavra.

No Catolicismo

As afirmações da teologia protestante atrás mencionadas nada têm que se oponham à tradição católica.

Com efeito. 0 culto cristão, desde as suas origens, sempre incluiu a leitura da Palavra de Deus acompanhada de cantos e orações; a Eucaristia antigamente era, não raro, celebrada na madrugada do domingo após uma noite de vigília em contato com a Bíblia. Nunca até hoje a Missa foi celebrada em circunstâncias normais sem a Liturgia da Palavra, a tal ponto que o Concílio do Vaticano II fala da mesa da Palavra e do Corpo do Senhor. ´Verdade é´ que o uso do latim, devido a circunstâncias contingentes, e hoje ultrapassadas, dificultou o entendimento da Bíblia durante séculos; mas hoje se acha removido, de modo a possibilitar a compreensão dos fiéis interpelados pela S. Escritura.

Na piedade pessoal antiga, a S. Escritura ocupava lugar primacial; S. Jerônimo (421) foi um dos grandes mestres que incutiram aos discípulos o recurso às Escrituras; é este doutor que afirma: ´´Ignorar as Escrituras é ignorar o Cristo´´. Para São João Crisóstomo (407), como para Lutero, o conhecimento íntimo das epístolas de São Paulo é a entrada obrigatória para a compreensão mais profunda do Cristianismo. Nos mosteiros, a lectio divina (leitura meditada das coisas de Deus) versava sobre a Bíblia, como alimento de oração e união com Deus.

É também clássica na Tradição cristã a afirmação de que a Palavra de Deus é viva, eficaz ou, em linguagem católica, um sacramental: santifica não apenas na medida da compreensão que dessa Palavra temos, mas também na proporção da fé e do amor com que a lemos.

Por conseguinte, as afirmações protestantes a respeito da Palavra de Deus procedem do coração de um vasto movimento de retorno às fontes que se iniciou no século XV e que no século XVI teve protagonistas entre os próprios católicos: Ambrósio Traversari (1439), John Colet (1519) e Tomás Moro (1535), o Cardeal Ximánez de Cisneros (1517)... 0 próprio Cardeal Caetano de Vio (1534), um dos mais firmes adversários de Lutero, considerava que o único meio eficaz para renovar a Igreja no século XVI seria a restauração bíblica, no seio da qual a Reforma protestante ia surgindo. Não é, portanto, o amor à Bíblia uma característica exclusiva do Luteranismo.

Acontece, porém, que a Bíblia, por motivos independentes dela mesma, veio a ser utilizada no século XVI como arsenal de heresias propaladas pelos Reformadores. Foi isto que tornou as Escrituras um livro suspeito aos olhos dos católicos. Diante dos variados arautos de ´´novos Cristianismos´´ pretensamente deduzidos da Bíblia traduzida para o vernáculo e diante da confusão assim instaurada, a Igreja julgou oportuno, naquela época, proibir aos fiéis o uso das Escrituras traduzidas para o vernáculo; esta atitude certamente marcou a piedade católica nos tempos subseqüentes. Hoje em dia, porém, verifica/se que as medidas drásticas tomadas no século XVI já não são necessárias nem convenientes.

Pergunta/se então: por que a volta à Bíblia, tão sadia e autêntica como era no século XVI, degenerou entre os Protestantes em fonte de heresias ou de doutrinas contrárias à própria Tradição cristã, a tal ponto que hoje algumas denominações oriundas do Protestantismo, conservando a Bíblia nas mãos, já não são cristãs (tenham/se em vista as Testemunhas de Jeová, os Mórmons...)?

Em resposta, dir/se/á que o Protestantismo, na sua estima à Palavra de Deus escrita, esqueceu que esta tem seu berço na Palavra de Deus oral; o Senhor no Antigo e no Novo Testamento falou e não escreveu; a Palavra escrita é a cristalização ocasional da Palavra de modo que, para entender autenticamente a Escritura, se requer a fiei ausculta da Palavra oral. Se arrancamos a Escritura da Tradição oral, que é o seu ambiente anterior e concomitante, temos uma Palavra que já não se explicita por si mesma; é letra que perde a sua vitalidade e fica sujeita a todo tipo de interpretação que os seus leitores lhe queiram dar. Ora a Tradição oral não é algo de vago e indefinido; ela continua viva na Igreja, que fala pelo seu magistério assistido pelo Senhor Jesus (cf. Mt 16,16/19; Lc 22,31s; Jo 14,26; 16,13s).

Em outros termos: para salvaguardar a autoridade da Bíblia, não é necessário negar a autoridade da Igreja; não há oposição, mas, sim, complementação entre uma e outra. Quem realiza essa separação, deixa de reconhecer aos poucos a autoridade da própria Escritura, pois cada intérprete faz a Bíblia dizer aquilo que ele subjetivamente concebe ou pensa; esse subjetivismo redunda em manipulação ou distorção da Palavra de Deus, donde resulta a fragmentação e o esfacelamento do Protestantismo; este se desmembra em correntes que se opõem umas às outras, baseando/se em textos arrancados do seu contexto. 0 individualismo dos intérpretes protestantes, desligados da Tradição oral viva na Igreja e no seu magistério, chegou a produzir (além das denominações não cristãs já citadas) as teorias liberais e racionalistas de Rudolf BuItmann e de escolas congêneres; estes vêem na Bíblia um aglomerado de mitos ou um discurso mítico do qual só se pode depreender um apelo à conversão ou a exortação a que passemos de uma vida não autêntica para uma vida autêntica; tem/se assim a morte da Palavra sagrada e do próprio Cristianismo que ela veio anunciar.

A experiência do Protestantismo é, pois, suficiente para nos dizer que nenhum texto bíblico, tomado a sós, fora do seu contexto oral originário, é capaz de se defender contra as interpretações subjetivas e arbitrárias que tendem progressivamente a minimizar a autoridade da Escritura, embora a proclamem soberana.

0 Catolicismo responde a esta problemática, afirmando que não há que acrescentar uma autoridade humana à autoridade divina das Escrituras, mas é necessário reconhecer que o próprio Deus, ao entregar/nos a sua Palavra, quis que ela fosse proclamada, lida e interpretada na caudal da Tradição oral, da qual é autêntica intérprete a Igreja, Corpo de Cristo, vivificado pelo Espírito Santo. A autoridade da Igreja está, portanto, incluída no desígnio divino de entregar a Palavra aos homens, de tal modo que esta permaneça incólume em meio às efusões do subjetivismo humano: o Senhor nunca pensou em deixar/nos sua Palavra abandonada ao mero bom senso ou fervor dos homens; Ele mesmo, vivo na Igreja, quis garantir a transmissão autêntica da sua Revelação.

Esta temática leva/nos a considerar diretamente a questão da Igreja no Protestantismo e no Catolicismo.

2. A Igreja

No Protestantismo

A grande dificuldade dos protestantes em relação à Igreja Católica é a autoridade doutrinária que ela reivindica. Julgam que tudo o que se conceda à autoridade da Igreja, é subtraído à autoridade da Palavra de Deus na Bíblia.

A autoridade da Igreja poderia também, segundo eles, ser considerada uma forma de opressão das consciências individuais.

Por que os protestantes da primeira geração assim pensavam?

Porque confundiam certas interpretações subjetivas e errôneas da Palavra de Deus com a própria Palavra de Deus. Em conseqüência, a Igreja, ciosa de conservar o autêntico sentido da Palavra, qual depositária responsável, só podia parecer/lhes um estorvo. Mais: a fobia da autoridade da Igreja facilmente se transformou em fobia de toda autoridade doutrinária no protestantismo liberal e racionalista dos séculos XIX/XX.

Cedo os próprios reformadores protestantes e seus sucessores perceberam que, rejeitando a autoridade da Igreja, estavam dando ocasião à anarquia doutrinal. Procuraram então um substitutivo para aquela, substitutivo que tomou cinco modalidades principais:

1. Lutero partiu da idéia de que, a religião sendo religião do Estado (como fora o Cristianismo desde o Imperador Romano Teodósio,(+395), o Estado deveria zelar pela incólume preservação das verdades da fé ou pela autoridade da Bíblia tal como Lutero a interpretava. 0 príncipe civil seria como que o ´´bispo supremo´´. Este princípio não podia deixar de ocasionar arbitrariedades ou o predomínio de interesses políticos sobre os religiosos.

2. Na Renânia foi estipulado que magistrados eleitos pelo povo luterano teriam a incumbência de defender a autoridade da Palavra de Deus. Verificou/se, porém, que a solução era precária, pois os magistrados de uma cidade ou região não diziam a mesma coisa que os de outra cidade.

3. Calvino procurou uma fórmula mais bíblica: verificou que São Paulo, ao evangelizar as cidades da Ásia Menor, constituía em cada qual um colégio de presbíteros ou anciãos, que ficavam responsáveis pela respectiva comunidade sob a jurisdição do Apóstolo (cf. At 14,23; ver também At 11,30; Tt 1,5). Calvino resolveu, pois, instituir presbíteros ou anciãos nas comunidades calvinistas, encarregados de tutelar a autoridade das Escrituras e a organização eclesial.

4. Na Inglaterra e na Nova Inglaterra, a autoridade foi confiada à própria congregação dos crentes: estes não poderiam desfazer/se dela em benefício de pessoa alguma. Assim teve origem o Congregacionalismo, segundo o qual os fiéis, de comum acordo, devem submeter/se à autoridade da S. Escritura e dela tirar as diretrizes concretas, dia por dia, para a vida da Igreja.

5. Algumas comunidades protestantes conservam o episcopado; tais foram as da Prússia e da Escandinávia (Luteranas) e as anglicanas (episcopaliarias). A autoridade de tais prelados nunca foi bem definida: ou seriam simples funcionários da Coroa, incumbidos principalmente de aplicar as decisões do ´´supremo bispo´´ (=o monarca) ou seriam moderadores de Concílios ou assembléias, representando o conjunto dos crentes ou grupos destes.

Na verdade, nenhuma destas soluções substitutivas do magistério da Igreja foi capaz de garantir a conservação intacta e fiel da Palavra de Deus; mas esta foi sendo, no decorrer dos quase cinco séculos de protestantismo, mais e mais estraçalhada mediante centenas e centenas de interpretações diferentes, que deram origem a centenas e centenas de ramos do protestantismo.

Pergunta/se: era necessário chegar a esse impasse do protestantismo? Como precisamente o Catolicismo considera a autoridade da Igreja diante da Palavra de Deus?

No Catolicismo

6. A Igreja Católica atribui a si uma autoridade doutrinária pelo fato de ser a Igreja instituída por Cristo sobre o fundamento dos Apóstolos.

Que significa isto exatamente?

Jesus Cristo se apresentou como o enviado do Pai e, por sua vez, enviou os Apóstolos a continuar a sua missão:

´´Como o Pai me enviou, também eu vos envio´´ (Jo 20,21).

´´Como Tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo´´ (Jo 17,18).

´´Quem vos recebe, a mim recebe, e quem me recebe, recebe aquele que me enviou´´ (Mt 10,40; cf. Lc 9,48; Mc 9,37).

´´Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza; e quem me despreza, despreza aquele que me enviou´´ (Lc 10,16).

´´Quem crê em mim, não é em mim que ele crê, mas naquele que me enviou´´ (Jo 12,44; cf. Jo 13,20).

Donde se vê que a Boa/Nova cristã procede do Pai; passa por Cristo e é confiada aos Apóstolos para que a difundam no mundo inteiro. Mais: Jesus prometeu aos Apóstolos sua assistência infalível até o fim dos séculos; onde haja a continuidade da sucessão apostólica, existe a certeza da presença atuante de Cristo na sua Igreja; disse o Senhor aos Apóstolos:

´´Toda autoridade no céu e na terra me foi entregue. Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando/as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando/as a observar tudo quanto vos ordenei. Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos´´ (Mt 28,18/20).

Depreende/se, pois, que a autoridade dos Apóstolos e, conseqüentemente, a da Igreja é a autoridade do próprio Cristo, que se serve de instrumentos e os adapta à sua obra, recorrendo a critérios objetivos: a apostolicidade ou a sucessão apostólica através dos séculos. Vê/se também que a autoridade da Igreja assim instituída não se restringe ao campo doutrinal, mas se estende à vida e à configuração espiritual dos cristãos; a Palavra de Deus proferida pelos Apóstolos e seus sucessores não tem valor apenas acadêmico, mas é eficiente e restauradora. Diz o Senhor Jesus:

´´Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos´´ (Jo 20,22s).

´´Tudo o que ligardes na terra, será ligado no céu; tudo o que desligardes na terra, será desligado no céu´´ (Mt 18,18).

Os Apóstolos recebem, pois, o Espírito do Pai, que é também de Cristo, e, assim habilitados, têm o poder de recriar o homem.

7. A esta altura, porém, coloca/se uma objeção, formulada pelo famoso exegeta protestante Oscar Cullmann: dado que os Apóstolos e, em especial, Pedro tinham o poder de ligar e desligar de maneira autêntica, é de crer que essa autoridade era intransferível; não passou para os sucessores dos Apóstolos. Sim; os Apóstolos eram, após Cristo, os fundadores da Igreja; ora tal função não se podia repetir. Após os Apóstolos, toca à Igreja tão somente permanecer na doutrina dos Apóstolos, fixada por eles nos livros do Novo Testamento; por isto a Igreja pós/apostólica não precisa de uma autoridade que continue a dos Apóstolos e a de São Pedro em particular; bastam/lhe os livros sagrados que os Apóstolos lhe entregaram.

Que responder a isto?

A Igreja não afirma que os bispos e os Papas sejam outros Apóstolos no sentido de fundadores da Igreja, independentes da primeira geração. Os bispos e o Papa são apenas guardiães e transmissores, credenciados por Cristo, do depósito sagrado que receberam dos Apóstolos. A fé da Igreja é simplesmente a fé dos Apóstolos; a Palavra que os seus bispos anunciam, há de ser aquela que os Apóstolos ensinaram por primeiro. Não se criam novos dogmas mas explicita/se o que está contido no depósito sagrado ou no tesouro ´´do qual se tiram coisas novas e velhas´´ (Mt 13,52). A autoridade dos bispos, assim entendida, pode manter viva a Palavra que os Apóstolos trouxeram à Igreja primitiva, com uma vida tão pujante quanto a tinha naquele tempo.

Ademais, no tocante a Pedro em particular, pode/se observar o seguinte: se Cristo o constituiu fundamento visível da sua Igreja (cf. Mt 16,16/19) e se a Igreja deve perdurar indefinidamente apesar das invectivas adversárias, é lógico que o fundamento Pedro há de perdurar em seus sucessores; em caso contrário, o edifício, sem fundamento, cairia por terra.

Aliás, notamos: através de toda a história da Igreja jamais em documento algum aparece a idéia de que a autoridade, após os Apóstolos, passou a residir unicamente nos Livros Sagrados. Todos os dizeres dos doutores e escritores antigos e medievais professam que a verdade do Evangelho continua presente na Igreja por uma tradição viva, que passou do Pai a Cristo, de Cristo aos Apóstolos, dos Apóstolos aos seus primeiros sucessores, e depois de bispo para bispo, iluminando os escritos sagrados que procederam dessa tradição oral.

A inegável continuidade histórica da Igreja Católica com a Igreja primitiva é a base desta afirmação. Se alguém precisa de provar sua origem divino/apostólica, não é a Igreja Católica. ´´É, pelo contrário, a tese tardia e despojada de precedentes, segundo a qual, com a morte do derradeiro Apóstolo, a verdade da Palavra de Deus, na Igreja, teria deixado de ser confiada a um grupo de responsáveis, revestidos da autoridade do seu Mestre; teria também deixado de ser a verdade de um livro´´ (L. Bouyer, livro citado, pp. 14s). A Igreja afirma que a verdade da Palavra de Deus está sujeita a ser deteriorada e alterada se é apenas a verdade de um Livro, entregue tão somente ao fervor ou ao acume dos seus leitores, sem que haja mandatários dotados do carisma da verdade para transmitir e interpretar autenticamente essa Palavra.

É nestes termos que, a partir da própria S. Escritura, tão cara aos protestantes, se pode demonstrar a necessidade e a existência real da Igreja com seu magistério assistido por Cristo. Os reformadores, se fossem conseqüentes consigo mesmos, não teriam abandonado a Igreja fundada por Cristo para garantir a incolumidade da Palavra; dizendo ´´não´´ à Igreja, expuseram as Escrituras à perda de sua vitalidade e ao arbítrio dos homens.

3. Os Sacramentos

No Catolicismo os sacramentos são os sete ritos pelos quais a graça do Pai, feita presente em Cristo e na Igreja, é aplicada a cada indivíduo desde o nascer até a morte. Ser cristão não é apenas ser discípulo do Mestre Jesus Cristo, mas é ser ramo do tronco de videira (cf. Jo 15,1/5) e membro do Corpo de Cristo (cf. 1Cor 12,12/27) / o que significa: comungar com a vida mesma do Tronco ou da Cabeça... com a vida de Cristo e, mediante Cristo, com a vida do Pai.

No protestantismo

1. Ora os protestantes rejeitam a maneira como os católicos entendem os sacramentos. Aliás, guardaram apenas o do Batismo e o da Eucaristia; o matrimônio no protestantismo é um contrato que o ministro ou pastor abençoa sem lhe atribuir o valor de sacramento.

Mesmo em relação ao Batismo e à Santa Ceia os protestantes têm conceitos um tanto vagos: apontam a ordem explícita do Salvador (cf. Mt 28,18/20; Jo 3,3; Mt 26,26/29...), mas explicam de diversas maneiras o significado desse rito.

0 Batismo, por exemplo, em algumas denominações, só é ministrado a jovens e adultos que ´´se tenham convertido´´; é um testemunho da fé e da mudança de vida já existentes naquele que recebe o Batismo; é, portanto, mais um gesto do homem para Deus e a comunidade do que um gesto de Deus em favor do homem. Os luteranos e as denominações mais antigas conservaram um conceito mais tradicional ou mais próximo do Catolicismo com relação a este sacramento.

A Santa Ceia, em caso nenhum, para os protestantes, é a perpetuação do sacrifício do Calvário. Lutero ainda admitiu a empanação ou a presença de Cristo dentro do pão consagrado; Calvino condicionou essa real presença à fé do comungante. Zwínglio, porém, rejeitou/a por completo. A Santa Ceia geralmente no protestantismo é a memória ou a recordação simbólica da última refeição de Cristo, mediante a qual os crentes em sua fé e seu amor se unem a Cristo.

2. Pergunta/se: por que assumem os protestantes posição tão distante da católica?

Podem/se apontar dois motivos:

a) a piedade do fim da Idade Média se apegara demais às coisas ou aos sinais concretos: relíquias, medalhas e outros sacramentais eram objeto de estima por vezes excessiva, ao passo que o sentido da Eucaristia era menos compreendido e vivido pela piedade popular; as práticas religiosas assumiam caráter mecânico, desligadas que eram de uma perspectiva teológica mais profunda;

b) o conceito de opus operatum escandalizava os reformadores. Na teologia católica, opus operatum é toda ação sagrada eficaz pela realização do próprio rito, independentemente dos méritos daquele que a efetua. Assim são os sete sacramentos: algo de objetivo através deles se processa, desde que os sinais sagrados (água, pão, vinho, óleo e palavras) sejam aplicados aos fiéis por um ministro devidamente instituído, mesmo que este não tenha as qualidades morais desejáveis; explica a teologia que em tais casos é Cristo quem opera os efeitos de santificação mediante o ministro, que é mero instrumento. É sempre Cristo quem batiza, quem consagra o pão e o vinho no seu corpo e no seu sangue, quem absolve os pecados... Por isto é que num hospital, quando uma criança está para morrer sem Batismo, qualquer pessoa (mesmo um ateu) pode batizá/la, desde que tenha a intenção de fazer o que Cristo e a Igreja fazem no caso, e aplique água natural com as palavras: ´´Eu te batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo´´. Assim, os sete sacramentos não são obra nossa, mas obra de Deus nas mãos dos homens; são os mais belos dons da misericórdia divina.

Do opus operatum distingue/se o opus operantis, que é uma ação sagrada cuja eficácia é condicionada ao fervor da Igreja ou, mais precisamente, do fiel que a executa: assim a leitura da Bíblia é um sacramental, cuja eficácia dependerá não só da compreensão do leitor, mas também, e principalmente, da fé e do amor com que lê.

Ora os reformadores não entenderam o conceito de opus operatum; identificaram/no, antes com ato mágico, pelo qual o homem tenta obrigar Deus a agir como a criatura deseja; seria um ´´truque´´ para dominar a Onipotência Divina. É claro que esta interpretação equivale a um mal/entendido, que faz dos sacramentos precisamente o contrário daquilo que eles são: pura graça soberana de Deus, que se dá aos homens sem que o homem possa dizer que o mereceu.

Vejamos agora a resposta que o Catolicismo dá a esta posição protestante.

No Catolicismo

3. 0 Catolicismo julga que os reformadores protestantes afirmaram duas grandes verdades que, se tivessem sido autenticamente desenvolvidas, teriam levado os protestantes ao reconhecimento dos sacramentos depurados das deformações e contrafacções que a piedade popular dos séculos XV/XVI lhes impusera. Com efeito, os reformadores enfatizaram:

a) o valor comunitário do culto católico. Apesar do individualismo que os afetava, proclamaram a índole pública da piedade e dos ritos litúrgicos, que se obscurecera no fim da Idade Média. A Santa Ceia seria celebração da assembléia, cujos membros participariam todos do símbolo sagrado;

b) o conceito de verbum Dei visibile (palavra visível de Deus), conceito formulado por S. Agostinho e muito valorizado por Lutero e Calvino. Como entender tal conceito?

Para os reformadores, a Palavra de Deus não é simples vocábulo, mas acontecimento (´´diabhar´´, em hebraico) ou intervenção de Deus em nossa vida, que ela transforma pela sua eficácia criadora. Ora a noção de Palavra visível de Deus vem a coincidir com a de sacramento no sentido católico; este é palavra associada à matéria (água, pão, vinho, óleo...),... matéria que torna visível o conteúdo da Palavra e, ao mesmo tempo, realiza o que a Palavra significa. 0 pão de trigo sobre o qual Cristo, por meio do seu legítimo ministro, diga: ´´Isto é o meu corpo´´, torna visível tal palavra, pois vem a ser o Corpo de Cristo. Da mesma forma o vinho de uva sobre o qual se diga: ´´Isto é o meu sangue´´, torna visível tal palavra, pois vem a ser o sangue de Cristo. Nos sacramentos a Palavra de Deus toca o homem por meio de sinais concretos para enxertar/lhe a vida de Cristo, que é a vida do País.

Infelizmente os reformadores não chegaram a esta conclusão, embora estivesse na lógica das suas premissas. Ao contrário, entenderam verbum Dei visíbile no sentido meramente intelectual, como se fosse uma palavra de menor valor, destinada aos iletrados, que só podem compreender mediante imagens ou através do sistema audio/visual. Conseqüentemente os templos protestantes foram mais e mais assumindo o aspecto de salas de aula, em que se ministram ensinamentos mediante palavras e gestos, mas em que falta o complemento lógico da Palavra que é o sacramento (=sinal eficaz de graça).

Desta forma a Palavra de Deus, tão legítima e oportunamente exaltada pelos reformadores, foi/se paradoxalmente depauperando contra toda lógica.

Chamar a atenção para estas verdades é abrir o melhor caminho para que o protestantismo possa recuperar a clássica doutrina relativa aos sacramentos.

4. Positivamente, a Igreja Católica ensina: nos sacramentos fala/nos e atua em nós a Palavra anunciada por aqueles que Cristo enviou, como se fosse Ele em pessoa que a anunciasse. Não são os nossos méritos nem a nossa fé que podem efetuar tão grandes coisas, como a comunhão com Cristo pelo Batismo, a Eucaristia, a Penitência..., mas é unicamente Deus, que falou uma vez por todas em Cristo,... em Cristo que continua a falar nos seus Apóstolos e na Igreja Apostólica que os prolonga. Ainda os sacramentos recebem toda a sua eficácia da Palavra de Deus, Palavra que os instituiu durante a vida terrestre de Cristo, Palavra que Cristo transmitiu aos seus Apóstolos e, depois destes, aos que lhes sucedem, de tal maneira que, onde quer que eles falem em nome de Cristo, repetindo o que Cristo disse, é sempre o Senhor Jesus quem fala e, falando, realiza o que Ele diz.

Vê/se, pois, que as palavras do Batismo, da consagração da Eucaristia, da absolvição dos pecados nada têm de mágico ou de ´´truque´´, mas são eficazes unicamente porque Jesus Cristo, mediante os Apóstolos e seus sucessores, continua presente e atuante na sua Igreja. Esta presença é perpetuada naqueles que Jesus escolheu como seus ministros, para falar em Seu Nome, através dos séculos, comprometendo/se a dar à sua Palavra nos lábios deles a mesma força que ela tinha nos lábios de Cristo. Pois, naqueles que Ele enviou, é Ele que está presente, fala e age, para manter sempre atuante o mistério da sua Cruz e Ressurreição, o mistério da sua Igreja e dos sacramentos,... mistério que é a derradeira Palavra que a Palavra de Deus tinha a nos dar.

4. Conclusão

O percurso traçado nas linhas anteriores pode ser assim compendiado:

Os reformadores (Lutero, Calvino... ) no século XVI partiram de uma intuição genial: restaurar a estima e o culto da Palavra de Deus, com todos os predicados de santificação que ela possui. Procederam muito bem, pois as Escrituras Sagradas vinham sendo empalidecidas por mentalidade fantasiosa e por escolas filosóficas decadentes no fim da Idade Média.

Se tivessem tirado as conclusões contidas neste seu princípio básico, só teriam reforçado e abrilhantado a única Igreja fundada por Cristo, pois afirmavam algo de genuinamente cristão e eclesial. Infelizmente, porém, arrancaram a Palavra de Deus escrita do seu berço anterior e do seu ambiente concomitante, que é a Palavra de Deus proferida oralmente, único critério adequado para se interpretar a Palavra escrita ou a Bíblia. Em conseqüência, esta perdeu sua vida, sua eloqüência própria e ficou sujeita às interpretações dos homens, animados, sem dúvida, de fé e fervor, mas marcados pela falibilidade e o subjetivismo; daí o paradoxal depauperamento da Palavra de Deus, que por último tem sido julgada (em vez de julgar) por intuições imaginosas do protestantismo moderno (mórmons, pentecostais, adventistas...) ou pelos princípios racionalistas do protestantismo liberal.

Ao invés desta caminhada, pode/se propor outra trilha: quem lê objetivamente as Escrituras, verifica que elas remetem constantemente o fiel à Palavra oral que a antecedeu e que a explica (2Ts 2,15; 3,6; lTs 3,4; 4,16; lCor 11,23/25...). Essa Palavra ou Tradição oral não perece, mas continua viva através dos séculos na Igreja, que não é mera sociedade humana, e sim o Corpo de Cristo prolongado; a este o Senhor concede sua assistência infalível desde que se guarde a sucessão apostólica (cf. Mt 28,18/20).

A autoridade da Igreja, portanto, credenciada pelas Escrituras não derroga à autoridade da Bíblia, mas serve a esta. Mais: é autoridade não apenas para ensinar, pois a Palavra de Deus não ensina apenas (como numa escola), mas é autoridade também para transformar o homem, comunicando/lhe a vida de Deus, pois a finalidade da obra de Cristo não é simplesmente ensinar, e sim levar à comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo (cf. lJo 1,1/3). Por isto, o Senhor dizia aos Apóstolos: ´´Fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando/as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo´´ (Mt 28,19). Nem a palavra da pregação vale sem o rito sacramental, nem o sacramento sem a pregação...

Em conseqüência, a Igreja, na qual Cristo vive e atua, tem a missão de oferecer aos homens não só a Palavra audível, mas também a Palavra visível de Deus ou a Palavra cujo significado é corroborado por sinais sagrados, de modo a transmitir através destes a vida de Deus; tais são os sacramentos. Sem estes, estaria incompleta a obra de Cristo e da Igreja; seria truncada a eficácia da Palavra de Deus.

Quem aceita a Igreja como Corpo Místico de Cristo dotada de autoridade doutrinal e eficácia santificadora garantidas por Cristo, aceitará conseqüentemente tudo o que daí decorre ou tudo o que a Igreja ensina como verdades de fé deduzidas da Palavra de Deus: o purgatório, a veneração dos santos e das suas imagens, o Papado, as indulgências, a Confissão auricular, etc. Cada um destes temas se prende à Palavra de Deus escrita, lida e explicitada pela Tradição oral.

Assim se vê que o protestantismo parte de afirmações positivas, às quais ele não deve renunciar; importa/lhe, porém, renunciar a princípios filosóficos que os séculos XV e seguintes lhe comunicaram, deturpando sua intuição inicial. Oxalá isto possa acontecer nesta época, em que o diálogo ecumênico vem sendo carinhosamente cultivado! Para tanto, toca grande responsabilidade aos fiéis católicos: requer/se que se despojem não só de toda imperfeição moral, mas também de toda mescla de doutrinas e atitudes heterogêneas, que empalideçam o brilho do Cristianismo tal como nos foi entregue através dos séculos pela Palavra de Deus escrita e oral.

Notas:

1. 0 Anglicanismo ou Episcopalianismo apresenta dois ramos: a ´´High Church´´ (Alta Igreja), próxima do Catolicismo, e a ´´Low Church´´ (Baixa Igreja), mais sujeita às influências dos Reformadores do século XVI... Os anglícanos descontentes com a índole ´´católica´´ da Igreja oficial, emigraram para os Estados Unidos, onde têm sido vítimas de subjetivismo crescente, que vai esfacelando o bloco protestante: multiplicam/se os fundadores de ´´igrejas´´ na base de intuições pessoais; essas diversas ´´igrejas´´ têm sua ascensão e seu declínío, dando lugar a um reavivamento (´revival´), que por sua vez declina e, conseqüentemente, ocasiona outro reavivamento...

2. As objeções dos protestantes contra as imagens e os Santos, o purgatório, a S. Escritura, o Santo Sacrifício da Missa, o Papado... decorrem da posição assumida por eles no tocante à Palavra, à Igreja e aos sacramentos. Feito o acordo sobre estes três pontos, os demais deixarão de causar dificuldades.

´´A Igreja sempre venerou as divinas Escrituras, da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor, já que, principalmente na Sagrada Liturgia, sem cessar toma da mesa tanto da Palavra de Deus quanto do Corpo de Cristo o pão da vida, e o distribui aos fiéis´´ (Constituição Dei Verbum no 21). Ver Presbyterorum Ordinís no 18, Perfectae Caritatis nº 6.

3. Podemos lembrar que, durante as disputas políticas que se seguiram ao brado reformador de Lutero, ficou estabelecido que cada território alemão teria oficialmente a religião do seu governante: ´´Cuius regio, eius refigio´´.

4. Quando se diz que a Igreja é ´´una, santa, católica e apostólica´´, não se entende diretamente a índole missionária da Igreja, mas o fato de que ela está fundada sobre Cristo e, necessariamente mediante os Apóstolos, chega até nós... Em conseqüência, percebe/se que a Igreja fundada por Cristo não pode ser recomeçada, por mais evidente que seja a fragilidade dos seus membros. Quem rompe com a Igreja de Cristo e funda ´´sua Igreja´´ (luterana, calvinista, wesleyana... adventista, batista...) perde a garantia da presença indefectível do Senhor prometida aos Apóstolos e seus sucessores até o fim dos tempos (cf. Mt 28,18/20). Institui uma sociedade que só tem o valor e a eficácia dos homens que a compõem e que, portanto, está sujeita a ser substituída por outra sociedade humana, devida a outro ´fundador´, sempre em condições muito precárias. São tantas e tantas as ´´igrejas´´ protestantes, umas derivadas das outras!